O Algarve às Sextas (2012.03.09)
Loteamentos Urbanos e Formação da Oferta de Turismo no Algarve

a)Contexto e Conceito



Þ     Contexto do Loteamento Urbano

Estamos em 1965. O crescimento sustentado das áreas urbanas de Lisboa e Porto data do início da década de 1950 e nelas abundam urbanizações clandestinas. No Algarve, a dinâmica urbana é diferente, porque resulta da procura por casas de turismo residencial e estabelecimentos hoteleiros. Como vimos, à regulação pública faltou a vontade para dotar o País de Politica de Solos e Planeamento Eficaz, seja de Escala Local ou Regional.

Este é o contexto da aprovação do Decreto-Lei sobre Loteamentos Urbanos (1). Apesar do magnífico texto do seu preâmbulo, a aplicação das suas disposições vai legalizar o crescimento desordenado e desqualificado dos centros urbanos do País e da Oferta de Turismo do Algarve.

O diploma tem âmbito nacional, mas é triplamente perverso no Algarve: fomenta a Urbanização Dispersa, a expansão desqualificada de núcleos urbanos e estrutura empreendimentos turísticos de maneira inadequada.



Þ     Conceito de Loteamento Urbano

Segundo as boas práticas, o Loteamento Urbano

·          “corresponde a operações de fraccionamento da propriedade e infraestruturação de uma ou mais parcelas de solo, com vista à produção de lotes urbanos. […] Não é tecnicamente sustentável permitir ou apoiar a realização de operações de loteamento urbano sem enquadramento no planeamento municipal. As operações de loteamento urbano terão lugar no interior dos perímetros urbanos […] e nunca em localizações desinseridas da estrutura e do tecido urbano planeado.” (2).

Com mais ou menos intensidade, entre 1965 e o início da década de 1990, o Loteamento Urbano é aprovado em violação desta boa prática e das disposições legais do Decreto-Lei de 1965 e de diplomas posteriores.

Contrariamente às boas práticas, o Loteamento Urbano vai ser um instrumento de criação de “espaço urbano”, na maior parte dos casos, lá onde dá jeito ao promotor do loteamento. Ocupamo-nos deste tema, deixando de fora a aplicação das disposições sobre infra-estruturas, áreas de compensação, fiscalidade e os tão tolerados direitos adquiridos, que eternizam os efeitos da aprovação de um loteamento.

  A legislação sobre Loteamentos Urbanos é instável e complexa, abrindo espaço a interpretações jurídicas, com relevante impacto territorial.



b)Instrumento de Urbanização Turística Dispersa



Þ     A Legislação de 1965

Segundo o Decreto-Lei de 1965,

·          “O loteamento urbano depende de licença da câmara municipal, que se pronunciará depois de ouvido […] a Direcção Geral dos Serviços de Urbanização”,

·          o parecer da DGSU é dispensado “se o loteamento for requerido para zonas de construção urbana previstas em plano ou anteplano de urbanização aprovado e obedecer às condições exigidas nos seus traçados e regulamentos”,

·           “Nas zonas para as quais não haja Plano ou Anteplano de Urbanização aprovado o pedido [de loteamento] será indeferido quando dele resultarem inconvenientes para o desenvolvimento ordenado dessas zonas”.

Na ausência de “planos ou anteplanos aprovados”, todos os loteamentos aprovados beneficiam do parecer da DGSU a reconhecer não haver “inconvenientes para o desenvolvimento ordenado dessas zonas”.



Þ     Legislação de 1973 e Exemplo de Incapacidade Politica

  A partir de 1973 (3), a Câmara Municipal “só poderá indeferir o pedido de loteamento” com base em um de oito fundamentos, dos quais citamos:

“d)Afectar manifestamente a estética dos povoamentos ou a beleza das paisagens;

e)Implicar alterações em construções ou elementos naturais classificados como valores concelhios;

f)Desrespeitar quaisquer normas legais, regulamentares ou técnicas aplicáveis;

g)Ser inconveniente para o desenvolvimento ordenado da zona em que se situa, quando esta não estiver abrangida por plano de urbanização aprovado;

h)Implicar trabalhos de urbanização não previstos pela Câmara Municipal, designadamente a construção de arruamentos e o assentamento de redes de abastecimento domiciliário de água e de electricidade e de drenagem de esgotos, salvo se o requerente se comprometer a executá-los por sua conta ou suportar o seu financiamento.”.

A DGS é consultada, se não existir Plano de Urbanização aprovado. Só na década de 1980 são aprovados os de Lagos e Zona Nascente de Quarteira. Entre 1973 e 1984, Câmaras Municipais, DGSU e Ministros reconhecem que todos os loteamentos urbanos do Algarve respeitam as alíneas citadas. Não encontrámos informação sobre loteamentos urbanos indeferidos.

Em Maio de 1973 (4), a Câmara Municipal de Albufeira

·           considera necessário “ouvir a DGSU sempre que estejam em causa loteamentos urbanos, e neste aspecto uma informação acerca dos problemas que tem surgido à Administração Municipal será certamente útil”;

·          informa o Ministro sobre a ”existência ou aceitação a nível camarário de loteamentos urbano-turísticos para os quais não se têm suficientes garantias de boa localização”.

O Ministro apenas menciona a aplicação da legislação sobre os inexistentes Planos de Urbanização e foge ao assumir de responsabilidades.



Þ     Loteamento Urbano na Politica de Solo de 1976

  Em 1976, a Política de Solos de 1976 (5) dispõe:

·          “As operações de loteamento urbano podem não ser autorizadas, ainda que correspondam a empreendimentos previstos em plano de urbanização aprovado, desde que a sua imediata ou próxima realização seja inconveniente para a programação adequada daquele plano ou planos de interesse geral, ou para o desenvolvimento ordenado da região.”.

Esta disposição, típica do “oito ao oitenta” parece não ter sido aplicada, pelo que, em teoria, o Governo assume que nenhum loteamento urbano no Algarve é “inconveniente para o desenvolvimento ordenado da região”;



Þ     A Legislação de 1984

  Em 1984 (6), são definidos três tipos de processos de loteamento: “especial, ordinário e simples, respectivamente

·          quando as operações implicassem alterações da rede viária publica existente e redimensionamento das infra-estruturas exteriores ao prédio ou prédios a lotear bem como alterações sensíveis das condições ambientais;

·          quando implicassem a construção de novos arruamentos e infra-estruturas mas apenas nos prédios a lotear;

·          quando a operação se limitasse a dividir em lotes um ou mais prédios confinantes com arruamento público existente sem implicar novas infra-estruturas.” (7).

Apenas a aprovação dos Processos Especial e Ordinário exige o Parecer da DG do Planeamento Urbanístico e normas de intervenção da DG do Ordenamento. Os Municípios ganham autonomia e responsabilidade.

Se não existe definição do “aglomerado urbano existente”, este é

·          “o núcleo de edificações autorizadas, servido por arruamentos públicos, e a respectiva área envolvente, em que o seu perímetro é definido pelos pontos distanciados 50m do eixo daqueles arruamentos no sentido transversal e 20m da última edificação do núcleo no sentido do arruamento [o sublinhado é nosso].”.

Conhecemos interpretações criativas desta regra, mas só investigação profunda pode confirmar as suas consequências, no território.



Þ     Decisões Políticas da Década de 1990

  A partir do início da década de 1990, é posto cobro à Urbanização Dispersa. Para além do PROTAL, “As operações de loteamento só podem realizar-se em áreas classificadas pelos Planos Municipais de Ordenamento do Território como urbanas ou urbanizáveis.” (9). É definido “Aglomerado Urbano”, para efeito da aprovação de loteamentos no seu seio.

Em 1993 (10), é definido o “regime de caducidade dos pedidos e dos actos de licenciamento de obras, loteamentos e empreendimentos turísticos”. O PROT exige o respeito dos condicionamentos ambientais. Muitos loteamentos urbanos já aprovados não respeitam estes condicionamentos. O Governo conclui pela caducidade destes loteamentos e impõe a verificação da sua compatibilidade com as disposições do PROTAL. Esta decisão do Governo cria um grave conflito entre o Estado e promotores.

  Em 1995 (11), são definidas as «áreas urbanas consolidadas», onde os loteamentos são excluídos da aplicação do diploma de 1993.

Na prática, o diploma de 1993 aplica-se aos loteamentos urbanos que geram Urbanização dispersa e o diploma de 1995 confirma a não aplicação aos loteamentos que alargam os núcleos urbanos [ver a seguir]. A avaliação da aplicação dos dois diplomas exige investigação aprofundada.



c)Instrumento de Alargamento de Núcleos Urbanos



Þ     Versão Diferente do Processo Descrito

Recuemos à década de 1970. Na zona de Albufeira, entre outros, são aprovados os Loteamentos de Montechoro, Vale Navio e Vila Nova. Estão todos em espaço rural e ilustram a Urbanização Dispersa.

Ainda antes do 25 de Abril, mas com maior expressão na década de 1980, em torno de quase todos os núcleos urbanos da vilegiatura tradicional, são aprovados loteamentos que aumentam a superfície do núcleo.

Nenhum destes loteamentos ocupa área ordenada por “plano ou anteplano de urbanização”, pelo que estão sujeitos a aprovação municipal e superior.



Þ     O Exemplo de Albufeira

Em Albufeira, a Zona de Intervenção do Programa Polis abrange uma área de 258 hectares, na qual se situa o Centro Antigo e, grosso modo, o núcleo urbano tradicional (12).

Ao definir os limites desta Zona, o Plano Estratégico lista dezanove loteamentos urbanos, todos eles de iniciativa particular e fora de qualquer planeamento urbano.

Este caso permite ilustrar duas realidades:

·          a densificação da Edificação Urbana no seio dos 268 hectares do «núcleo urbano tradicional»,

·          a falta de estrutura urbana qualificada das novas Cidades do Algarve – Albufeira não é excepção, mas ilustração da regra.



d)Loteamento Urbano e Empreendimentos Turísticos



Þ     A Lacuna da Politica de Turismo

O conjunto de Leis Hoteleiras e dos Empreendimentos Turísticos não incluem o essencial da Oferta do Turismo do Algarve: novas modalidades de empreendimentos, conjuntos turísticos e turismo residencial.

A oferta não enquadrada pela Politica de Turismo passa a ser mais importante do que a que esta abrange. No Algarve de 2011, há cerca de

·          100.000 camas de Alojamento Turístico Classificado,

·          145.000 Fogos (cerca de 725.000 camas) de Alojamento Turístico Não Classificado.

Destes 145.000 Fogos ignoramos o número de casas isoladas, de apartamentos em condomínios de Propriedade Horizontal e de vivendas e apartamentos em Loteamentos Urbanos.



Þ      Loteamento Urbano e Empreendimento Turístico – Uma Insanável Contradição

 As sucessivas definições de Loteamento Urbano mantêm elementos invariantes: divisão de um terreno em lotes, obras de urbanização e venda dos lotes a cargo do promotor, que entrega das infra-estruturas à Câmara Municipal e “desaparece” do processo.

 Quando o Loteamento é utilizado para estruturar legalmente empreendimentos de turismo residencial «em extensão»,

·          não garante a sua sustentabilidade turística, em particular, os custos de manutenção do urbanismo turístico em «ambiente de resort»;

·          cria espaço público que, mais tarde ou mais cedo, é mantido pela autarquia, de acordo com os padrões das zonas urbanas residenciais e não de acordo com o «ambiente de resort», existente durante a venda,

·          o que resulta de um loteamento é um conjunto de moradias e blocos de apartamentos, eventualmente em «ambiente de resort», de incerta sustentabilidade e uma quase total liberdade de acção dos residentes.



Þ     Soluções Paliativas

  Esta contradição insanável pode ser ultrapassada de maneira atípica, mas dificilmente generalizável:

·          as empresas mistas, constituídas entre a CM de Loulé e empresas privadas (Infralobo, Inframoura e Infraquinta) asseguram “a gestão de todas as infra-estruturas básicas para a manutenção, conservação, tratamento de águas residuais, jardins, espaços públicos, recolha de lixo, segurança entre outras actividades”, em Vale do Lobo, Vilamoura e Quinta do Lago (Região Sul, 17.5.1995).

Em vários empreendimentos de turismo residencial estruturados por loteamentos urbanos, há clausulas contratuais que procuram garantir o equilíbrio entre os interesses do promotor (enquanto presente), do gestor que o substitui e dos proprietários e utilizadores.   

Estes empreendimentos exigiriam atenção positiva e proactiva da Politica de Turismo, para minimizar danos futuros, mas o problema é ignorado.



d)Actualidade e Mutação dos Loteamentos Urbanos



De tudo isto, há cinco ideias a reter:

·          na década de 1990, disposições legais, determinação politica e administrativa e ameaça de cortes de fundos comunitários às autarquias, criam a ruptura politica do período em que a Lei estrutura a informalidade,

·          já não podemos reparar os danos na utilização do solo, no ordenamento do território, na formação de urbes e na descaracterização da Paisagem,  

·          não mudamos um País por Decreto-Lei – estas disposições e as que seguem até hoje permitem a mutação da informalidade em novas formas,

·          a mutação cria novas formas de degradar o solo, o ordenamento, a urbe e a paisagem – o processo retoma força com mínimo relance da economia

·          a Politica e Serviços de Turismo excluem do seu âmbito a parte mais importante da Oferta de Turismo do Algarve e a mais carente de Regulação Pública – a Região e o País estão a pagar caro o custo desta demissão.

Eis temas de próximos O Algarve à Sexta.



Albufeira 9 de Março de 2012

Sérgio Palma Brito

Referências

(1) Decreto-Lei nº 46.673, de 29 de Novembro de 1965

(2) Direcção Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, Normas Urbanísticas, Volume III, Lisboa, 1993, p. 85

(3) Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho

(4)Datado de 14 de Maio de 1973; Arquivo da CCDRA, Caixas Albufeira

(5)Decreto-Lei nº 794/76, de 5 de Novembro

(6)Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro

(7)Manuel da C. Lobo, Administração Urbanística - Evolução Legal e sua Prática, Instituto Superior Técnico Press, Lisboa, 2005, p. 213

(8) Em 1988, o Ministério do Comércio e Turismo, através da DGT, passa a dar parecer operações de loteamento urbano com implicações na Oferta Turística Classificada – não encontrámos traço da aplicação do Decreto-Lei nº 149/88, de 27 de Abril

(9)Decreto-Lei nº 448/91, de 29 de Novembro; o Decreto-Lei define ainda Área Urbana, mas, para o efeito do nosso trabalho esta disposição não parece ser relevante.

(10)Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro.

(11)Decreto-Lei nº 61/95, de 7 de Abril

(12)Programa POLIS, Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território, Viver Albufeira, Programa Polis, Plano Estratégico, Lisboa, 2000, p. 13

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