Transparência e competência na privatização da TAP


O decreto-lei que formaliza a privatização da TAP é aprovado em 13 de Novembro de 2014 e publicado a 24 de Dezembro (1). A sua leitura põe em evidência seis fragilidades a exigir escrutínio público em que devemos participar:

-Menosprezar a Comissão de Acompanhamento,

-Venda directa sem orientações estratégicas e “única via”,

-Critérios de difícil “controlo objectivo da sua aplicação”,

-Alternativa à “impossibilidade” da capitalização pública da TAP,

-“obrigações de serviço público” e ilusão do serviço público,

-A preocupante delegação de competências.

O governo tem mandato democrático para privatizar a TAP mas não respeita as exigências legais e cívicas de transparência, e abusa de manifestações de incompetência. Nada disto é original em Portugal, mas a importância da privatização da TAP não permite complacência. É isto que está em causa.

 

*Informação ao leitor
O presente post tem versão em PDF está disponível (aqui) e é directamente apoiado por dois outros:

-Actualidade de erros no processo de privatização da TAP em 2012 (aqui)

-Privatização da TAP – realidade e ilusão de ‘garantir serviço público’ (aqui).

O presente post insere-se em série sobre a privatização da TAP. Afirmações aqui feitas são justificadas em posts já publicados ou a publicar – terminada a sua publicação, actualizamos os links.

O leitor deve estar informado sobre os Princípios Gerais do blogue.

  

1.Menosprezar a Comissão de Acompanhamento

*Tribunal de Contas como alibi?
O governo afirma querer “reforçar a absoluta transparência e concorrência” no processo de privatização da TAP e para o efeito

-“decidiu colocar à disposição do Tribunal de Contas todos os elementos informativos respeitantes aos procedimentos adoptados no âmbito da referida operação”.

Admitimos a bondade desta decisão, mas ela mais parece ser alibi do que desígnio. No essencial

-o governo menospreza a transparência no processo de privatização da TAP ao não instituir a “comissão especial para acompanhamento” no decreto-lei publicado a 24 de Dezembro.

*A fundamental importância da comissão de acompanhamento
A “comissão especial para acompanhamento” é prevista no Artigo 20º da Lei-Quadro das Privatizações e

-“tem por incumbência apoiar tecnicamente o processo de reprivatização, de modo a garantir a plena observância dos princípios da transparência, do rigor, da isenção, da imparcialidade e da melhor defesa do interesse público.”.

Ao não instituir a comissão e nomear rapidamente os seus membros, o governo viola a disposição legal que estipula:

-“3 — Compete às comissões especiais acompanhar o processo de reprivatização, independentemente da forma e procedimentos que venham a ser concretamente adoptados para a sua concretização, designadamente:

a) Fiscalizar a estrita observância dos princípios e regras consagrados na lei, bem como da rigorosa transparência do processo;” (2).

*Repetir o inaceitável precedente de 2012?
Passado mais de três semanas sobre a publicação do decreto-lei de 24 de Dezembro, é urgente obter resposta a uma pergunta:

-vai o governo repetir o inaceitável precedente de 2012 de não permitir que a Comissão de Acompanhamento possa “Fiscalizar a estrita observância dos princípios e regras consagrados na lei, bem como da rigorosa transparência do processo”?

Com efeito e como mostramos no Anexo 1,

-entre o inicio formal do processo de privatização (21 de Setembro de 2012) e a nomeação formal da Comissão (19 de Dezembro) decorrem noventa dias,

-entre a nomeação formal da Comissão (19 de Dezembro) e a decisão do Conselho de Ministros (20 de Dezembro) decorrem 24 horas.

É sempre possível dizer que os membros da Comissão são informados da decisão a 6 de Dezembro de 2012, mas tal não atenua a realidade

-em2012, a decisão política do governo é não permitir que a Comissão prevista na Lei-quadro das Privatizações possa “Fiscalizar a estrita observância dos princípios e regras consagrados na lei, bem como da rigorosa transparência do processo”.

 

2.Venda directa sem orientações estratégicas e “única via”

*Venda directa a accionista e projecto estratégico para a TAP
A opção do governo pela modalidade de venda directa a accionista de referência é legítima e adequada, mas

-“torna decisiva a apresentação de um projecto estratégico para a empresa associada à necessidade de traduzir esse projecto estratégico em compromissos juridicamente vinculativos” (3).

O decreto-lei reduz o “decisiva” a

-apenas exigir que os candidatos apresentem “adequado projecto estratégico”, que preveja “o crescimento da TAP” e “o crescimento e desenvolvimento da economia nacional”, mas

-de facto, faz deste projecto um dos mais importantes critérios de selecção (4).

Num processo conduzido com rigor, o governo define previamente as orientações estratégicas da privatização da TAP, as quais

-alinham os projectos estratégicos apresentados pelos concorrentes,

-permitem a sua avaliação objectiva,

-dão base racional à escolha do investidor de referência.

Mostramos a seguir que o governo não só não define orientações estratégicas para a TAP como abusa do argumento da “única via” para escapar (de escapism) a definição das que se impõe definir.

*Ausência de orientações estratégicas para a TAP
Segundo o preâmbulo do decreto-lei, a opção pela modalidade de venda directa de referência é a que

-“os interesses públicos subjacentes à operação”,

-“as opções estratégicas do Governo para este sector” (5).

Salvo erro nosso, o governo ainda não explicitou estes interesses e opções.

Antes de avançar com a privatização da TAP o governo devia ter definido o que designamos por “orientações estratégicas da privatização da TAP”, no âmbito da acessibilidade aérea competitiva a Portugal (post). Incapaz de explicitar estas orientações, o governo fica reduzido a

-justificar a privatização da TAP pela imediata necessidade da sua capitalização,

-considerar “impossível” a capitalização pública,

-intervenções públicas dispersas e contraditórias sobre serviço público (aqui).

*Falso argumento da “única via” e escapism do governo
O decreto-lei formaliza a orientação oficial justifica a privatização como “única via” para assegurar a recapitalização, “condição essencial para que a empresa possa prosseguir o seu esforço de investimento”.

Como mostramos a seguir, não há “única via” porque há alternativa da capitalização pública. Na realidade o governo quer escapar (6) à definição de orientações estratégicas incómodas e de entre as quais citamos:

-a TAP carece de reestruturação profunda de que a capitalização é um instrumento entre outros,

-ninguém capitaliza uma empresa com problemas sem a reestruturar,

-sem reestruturação privada ou publica, a TAP caminha para falência mais ou menos desordenada – só a ministra das Finanças reconhece a realidade: “a TAP ou é privatizada ou está condenada a desaparecer”.

Esta é a realidade que o projecto estratégico dos candidatos não pode ignorar e que define a sua validade e adequação às reais exigências da privatização da TAP.

*Dificuldade na avaliação e escolha dos projectos estratégicos
Na ausência de orientações estratégicas nacionais da privatização da TAP, o País fica dependente

-dos projectos estratégicos apresentados por cada um dos candidatos,

-de uma decisão que o governo toma sem base objectiva para escolher o melhor.

 

3.Critérios de difícil “controlo objectivo da sua aplicação”

*Em 2012 – critérios de selecção e escolha criticados pela Comissão de Acompanhamento
Em 2012, o governo define dois conjuntos de critérios, um para a avaliação das intenções e outro para a escolha do investidor – ver o texto completo em Anexo (Aqui).

Acontece que em 2012 estes critérios são desacreditados pelo Parecer Prévio da Comissão de Acompanhamento:

-“Todavia, quer os critérios de selecção das intenções de aquisição e subscrição das acções, quer, sobretudo, os de selecção dos potenciais investidores concorrentes e das respectivas ofertas são concebidos de tal modo, que, se tivesse sido necessário aplicá-los, dificilmente seria possível um controlo objectivo da sua aplicação.” (7).

*Em 2014, insistir no erro de 2012
No decreto-lei de 2014, o governo define

-“critérios de selecção das intenções de aquisição para integração dos potenciais investidores em subsequentes etapas do processo de venda directa e para a escolha das propostas objecto de adjudicação”.

Estes critérios são quase ‘cópia/cola’ dos definidos em 2012 para a avaliação – ver ponto A.1 do Anexo.

Ficamos reduzidos à situação em que

-o governo vai escolher o investidor de referência com base em critérios que dificultam “um controlo objectivo da sua aplicação.”.

*Nota sobre o critério das obrigações de serviço público
Em relação a 2012, o governo inclui um critério aparentemente novo:

-“d)A capacidade para assegurar o cumprimento, de forma pontual e adequada, das obrigações de serviço público que incumbam à TAP;”.

Como demostramos em no post de apoio, o critério

-não é novo, porque em 2012 figura no Caderno de Encargos,

-é irrelevante porque apenas se aplica a algumas rotas e frequências entre a Região Autónoma dos Açores e o Continente e actualmente em curso de liberalização.

 

4.Alternativa à “impossibilidade” da capitalização pública da TAP

*A falsa “única via” para recapitalizar a TAP 
O decreto-lei publicado a 24 de Dezembro é aprovado pelo Conselho de Ministros 13 de Novembro (aqui). No texto do preâmbulo que é anterior a esta data,

-o governo afirma que perante a “impossibilidade de ser o Estado, enquanto accionista, a assumir a necessária recapitalização da TAP”, a privatização da TAP “surge como a única via para atingir este objectivo”.

A afirmação não é verdadeira porque

-a capitalização da TAP pode ser assegurada pelo Estado, com recurso a deficit/dívida e sujeita a acordo da União Europeia, mediante condições e programa de reestruturação imposto pela Comissão (8).

O governo erra quando não explicita que

-a alternativa à privatização é a ajuda do Estado à TAP, com centenas de milhões de euros de deficit publico e dívida, e com a Comissão a impor um duro programa de reestruturação da empresa (post a publicar).

*Contradição no governo e “impossibilidade” como opção politica
Em 5 de Dezembro no Parlamento, o ministro da Economia insiste na “impossibilidade”:

-“Um Estado não pode injectar capital nas empresas [de aviação], salvo uma circunstância excepcional: só em razão de um plano de salvamento. E só se pode fazer uma vez e a TAP já o fez” (aqui).

O ministro

-baseia-se na ajuda decisão da Comissão em 1994 terminar com “Em conformidade com a legislação comunitária, Portugal se abstenha de conceder mais auxílios à TAP”, mas

-omite que as novas regras de ajuda do Estado de 2014 apenas impõem um prazo de dez anos entre ajudas (9).

A 17, o secretário de estado dos Transportes contradiz o ministro da Economia e transforma a “impossibilidade” em opção politica. Com efeito,

-refere que a União Europeia impõe que a capitalização pública implique, entre outros, “diminuição de rotas e despedimento de pessoas”,

-reconhece ser a defesa do serviço da TAP por inteiro que “nos impede de olhar para esta hipótese” e por isso “acreditamos que é impossível injectar dinheiro na TAP” (aqui).

Reconheçamos que há diferença colossal e robusta entre impossível e alguém considerar que é impossível porque não quer optar pela alternativa.

*Criar mais uma ilusão?
A 17 de Dezembro, o secretário de estado dos Transportes vai mais longe, ao afirmar que

-a capitalização pelo Estado implica programa de reestruturação com “diminuição de rotas e despedimento de pessoas”, dando lugar a “uma TAP porventura mais rentável, mas que também não cumpriria a função estratégica que hoje cumpre.” (aqui).

O leitor é levado a concluir que o accionista privado que é suposto capitalizar a TAP o fará sem uma reestruturação profunda e custosa da empresa. Como veremos em outro post o governante ilude os portugueses e escapa a tomar posição sobre as opções estratégicas da privatização da TAP, como vimos antes (post a publicar).

 

5.“obrigações de serviço público” e ilusão do serviço público

*Quando o rato pare uma montanha
A supersíntese do que segue resume-se a

-o decreto-lei formalmente aprovado a 13 de Novembro e elaborado semanas antes apenas refere “obrigações de serviço público que incumbam à TAP”,

-na prática são ligações entre o Continente e Açores, actualmente em curso de liberalização,

-para além desta realidade comezinha, todo o discurso político sobre ‘serviço público’ é mero ilusionismo político.

No articulado, um dos critérios de selecção das intenções e escolha das propostas recupera um dos critérios que em 2012 figura no Caderno de Encargos:

-“d)A capacidade para assegurar o cumprimento, de forma pontual e adequada, das obrigações de serviço público que incumbam à TAP.”.

Contrariamente ao veiculado por diário económico de referência não é verdade que “Governo exige que novo dono da TAP cumpra serviço público, ao contrário de em 2012” (aqui).

*A ilusão do serviço público
O governo tem a obrigação de saber que a “obrigação de serviço público” tem definição legal a nível de Portugal e da União Europeia, pelo que não é decisão livre do estado português nem passível de fantasia politica (10). Por outro lado, o rigor do decreto-lei data da sua elaboração em Setembro ou Outubro de 2012, mas não impede que governantes

-criem cacofonia de declarações sobre a substância do serviço público que a TAP privada será obrigada a prestar,

-assegurem que a obrigação de serviço público "tem que ser sempre uma garantia e até uma condição para que a TAP possa ser privatizada a 100% algum dia" (aqui).

Dada a importância da cacofonia e desta “garantia”, consagramos um post ao assunto (aqui).

 

6.A preocupante delegação de competências
Vale a pena citar o Artigo do decreto-lei sobre delegação de competências:

-“Para a realização da operação de reprivatização regulada pelo presente diploma, são delegados na Ministra de Estado e das Finanças, com faculdade de subdelegação na Secretária de Estado do Tesouro, os poderes bastantes para definir o preço unitário de subscrição ou alienação das acções, para determinar as condições acessórias que se afigurem convenientes e para praticar os actos de execução que se revelem necessários à concretização da operação de reprivatização.”.

Se atendermos à importância da TAP para a Economia, é estranho que esta delegação de poderes exclua o ministério da dita.

Mais do que estranho, esta delegação é preocupante porque em 2012,

-a privatização da ANA e TAP foram apressadas e integradas nas contas do deficit publico,

-a privatização da ANA foi subordinada ao encaixe financeiro, em detrimento do fomento da Economia – entre outros, os recentes aumentos das taxas aeroportuárias resultam desta prioridade.

 

A Bem da Nação

Lisboa 15 de Janeiro de 2015

Sérgio Palma Brito

 

Notas

(1)Decreto-Lei nº 181-A de 24 de Dezembro de 2014 “Aprova o processo de reprivatização indirecta do capital social da TAP - Transportes Aéreos Portugueses, S. A.” (tretas.org). A “reprivatização indirecta do capital social da TAP - Transportes Aéreos Portugueses, S. A.” resulta da reprivatização ter “lugar mediante a reprivatização do capital social da TAP – SGPS, S. A.”.

No presente post, a expressão corrente de  ‘privatização da TAP’ refere este processo que não detalhamos para não complicar o texto.

(2)Lei n.º 50/2011, de 13 de Setembro. Altera (segunda alteração) e republica em anexo a Lei Quadro das Privatizações, aprovada pela Lei n.º 11/90, de 5 de Abril (tretas.org)

(3)Sérgio Gonçalves do Cabo, Privatizações em tempos de crise, ver (aqui).

(4)O texto completo do critério é: “b) A apresentação de um adequado projeto estratégico, tendo em vista a promoção do crescimento da TAP, com respeito pelo cumprimento dos objetivos delineados pelo Governo para este processo de reprivatização, a promoção do reforço da sua posição concorrencial enquanto operador de transporte aéreo à escala global nos mercados atuais e em novos mercados, bem como o crescimento e desenvolvimento da economia nacional;”.

(5)O preâmbulo do decreto-lei de 24 de Dezembro lista ainda objectivos genéricos da Lei Quadro das Privatizações – ver slide sobre a Revisão da Lei Quadro das Privatizações na apresentação da nota (4).

(6)A atitude é muito corrente na vida pública nacional mas a sua designação ainda não figura no Dicionário da Academia. Citamos o New Oxford Shorter: “The tendency to seek, or practice of seeking, distraction or relief of reality”.

(7)Relatório final da Comissão Especial para o Acompanhamento da Privatização da TAP-SGPS, SA e Relatório Preliminar de 19 de Dezembro de 2012 (aqui).

(8)Ver o documento “State aid for airline restructuring: does it give you wings?” de 9 de Julho de 2014 (aqui).

Para mais detalhe, ver “Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade” (aqui).

(9)Ver 94/698/CE: Decisão da Comissão, de 6 de Julho de 1994, relativa ao aumento de capital, garantias de crédito e isenção fiscal existente em favor da TAP (aqui). Sobre as novas regras, ver Nota (8).

(10)No site do INAC, o leitor mais curioso pode ir directamente a Obrigações de Serviço Público (aqui).

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