Polémica sobre alojamento local e dimensão ignorada do turismo

A crescente polémica sobre o que se designa de Alojamento Local em Lisboa e Porto está condenada à esterilidade por não o integrar no conceito alargado da economia do turismo (1).

Alojamento Local designa a residência secundária arrendada a turistas pela família que nela investiu para rendimento, utilização ou misto de rendimento e utilização, com a perspectiva de mais-valia em venda futura. Sem este investimento de famílias portuguesas e estrangeiras não há oferta para a procura de Alojamento Local. É isto que está em causa nos diversos destinos turísticos regionais

No presente post analisamos as dinâmicas na formação destas residências secundárias. No próximo mostramos como a cadeia de valor gerada pela sua utilização turística é ignorada pelo discurso light sobre turismo.


1.Alojamento familiar no Recenseamento da Habitação (INE – 2011)
*Conceitos utilizados pelo Recenseamento da Habitação
O Recenseamento da Habitação de 2011 considera três tipos de Ocupação do Alojamento Familiar no “momento de referência”:

-Residência Habitual, quando constitui a residência habitual ou principal de pelo menos uma família,

-Residência Secundária, quando é apenas utilizado periodicamente e no qual ninguém tem residência habitual,

-Vago, quando está disponível para venda, arrendamento, demolição ou outra situação no momento de referência.

A partir desta base, temos realidades diferentes:

-o alojamento familiar de residência habitual pode ser de propriedade do ocupante ou arrendado a um senhorio,

-o alojamento secundário ou vago é investimento, por compra ou herança, de quem habita uma residência principal em Portugal ou no estrangeiro.

Em síntese:

-antes de falar em Alojamento Local, temos de quantificar (e, já agora, respeitar) o investimento das famílias em alojamentos familiares de residência secundária e vagos e identificar as dinâmicas económicas e sociais que estão na sua origem e utilização,

-esta dimensão de investimento familiar ‘na pedra’ está quase sempre ausente nas intervenções sobre Alojamento local.

*Alojamentos familiares segundo a ocupação
O gráfico 1 ilustra a ocupação dos 5.732 milhares de Alojamentos Familiares em Portugal, no “momento de referência” do Recenseamento da Habitação de 2011:

-3.829k em Residência Principal (69% total), 1.099k de Residência Secundária (19% total), e 704k Vagos (12% total),

Gráfico 1 – Ocupação dos Alojamentos Familiares em Portugal (2011)
(milhares e percentagem)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Recenseamento da Habitação, 2011

Esta informação evita que o leitor se deixe manipular por slogans como:

-há “700.000 casas vazias em Portugal” e “quase metade das casas do País não é de habitação permanente”, maldades que o País deve à ganância dos especuladores.

A informação permite ainda racionalizar excessos verbais vindos de onde não deveriam vir. Segundo o Expresso, o “urbanista e professor universitário Sidónio Pardal” afirma: “Há 1,2 milhões de casas a mais”. A explicação é:

-“Se considerarmos os centros urbanos das grandes cidades podemos estar a falar de 600 mil fogos excedentários. Se a estes adicionarmos todos os imóveis em ruinas e abandonados no resto do país, incluindo muitas aldeias praticamente desabitadas, o valor pode subir a 1.2 milhões.” (2).

O País tem o direito de esperar mais da Universidade que paga para investigar, estudar e criar conhecimento. O número em causa e quase o dobro do de alojamentos vagos e mistura o potencial de valorização dos centros urbanos com as ruínas de arruinados casebres da miséria rural do País.

*Alojamentos Familiares segundo a ocupação – por NUTS II e total
Os gráficos 2 e 3 ilustram a repartição por NUTS II do Continente, da ocupação dos Alojamentos Familiares no Recenseamento de 2011 e do total –não indicamos o total do Continente no gráfico 2 para não prejudicar a escala do gráfico.

Da observação conjunta dos dois gráficos destacamos:

-uma percentagem de alojamentos vagos que é praticamente idêntica em todas as NUTS II e por consequência no total,

-percentagens diversas de residências secundárias que podemos ligar a dinâmicas económicas e sociais em cada uma das NUTS II.

Gráfico 2 – Alojamentos Familiares Segundo a Ocupação, por NUTS II do Continente
(milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Recenseamento da Habitação, 2011

Gráfico 3 – Alojamentos Familiares Segundo a Ocupação, em Percentagem do Total, por NUTS II do Continente
(percentagem)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Recenseamento da Habitação, 2011

*Caso especial do Algarve
O gráfico 4 ilustra a evolução a ocupação do alojamento familiar no Algarve entre 1970/2011. Destacamos

-o crescimento do número de residências secundárias, em grande parte resultado de construção nova,

-a quantidade em causa: num total de 145.000 alojamentos, a parte da edificação nova deve andar pelo menos pelos 120.000 (3).

Gráfico 4 – Ocupação do alojamento familiar no Algarve (1970/2011)
(milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Recenseamento da Habitação (1970 a 2011)

*Caso especial de zona histórica de Lisboa
O gráfico 5 ilustra a ocupação do alojamento familiar em zona histórica de Lisboa entre 1981/2011. Destacamos:

-entre 1981/2011 o número total de alojamentos não cresce, e a diminuição dos de residência habitual corresponde ao crescimento dos de residência secundária e vagos,

-em 2011, há 10.889 alojamentos de residência secundária e vagos – serão os primeiros a ser reabilitados para comercialização em Alojamento Local.

Esta amostra de dezassete freguesias ‘antigas’ da zona histórica de Lisboa é o cadinho em que se funde quase todo o debate sobre o Alojamento Local. Neste ponto destacamos:

-estão em causa pouco mais de dez mil alojamentos, que integram uma dinâmica muito específica [ver a seguir],

-não podemos generalizar o que acontece nesta pequena amostra a todo o universo do Alojamento Local e é isto que está a ser feito.

Gráfico 5 – Ocupação do alojamento familiar em zona histórica de Lisboa (1981/2011)
(unidades)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Recenseamento da Habitação (1981 a 2011)

2.Dinâmicas económicas/sociais na formação dos alojamentos de residência secundária e vagos
2.1.Residentes em Portugal
1.Lembramos as duas últimas grandes fases no despovoamento de muito do Território do País:

-a população que se desloca para as Áreas Urbanas de Lisboa e Porto, a partir da década de 1950,

-a da emigração para a Europa, a partir da década de 1960.

Estes movimentos de população libertam alojamentos familiares de residência habitual,

-no momento em que ocorrem e posteriormente com o ciclo de falecimentos de avós e pais de portugueses da actualidade,

-por venda no mercado ou por herança seguida de venda ou manutenção no património familiar.

Ao longo dos anos estes alojamentos dão origem a

-residência secundária da família deslocada ou emigrada,

-alojamentos vagos, quando não têm condições para poderem ser ocupados, ou valor para serem vendidos (4).

Em paralelo, citadinos compram alguns destes alojamentos para os recuperar como residência secundária. Desconhecemos a maneira como chega a Portugal o movimento das ‘fermette à retapper’ da França dos anos setenta/oitenta. Em Portugal, o tempo da recuperação dos montes do Alentejo data da segunda metade da década de oitenta.

Os emigrantes passam a ser portugueses residentes no estrangeiro e estão na origem de outra cadeia de valor [ver a seguir].

2.Famílias da província investem num apartamento em Lisboa (quase sempre fora da zona histórica), ligado ou não à utilização pelos filhos enquanto estudantes, e utilizado como segunda residência. Em 2011 e no concelho de Lisboa, os alojamentos vagos (50k) representam 15,5% do total de alojamentos (323k)

3.Familias proprietárias de apartamentos nas zonas históricas de Lisboa aceitam que um número crescente destes apartamentos se degrade como vagos por não haver procura pela sua utilização como residência permanente ou secundária. Em 2011, os alojamentos vagos (7.254) representam 26,7% dos alojamentos de zona histórica da cidade (27.138) – a percentagem de alojamentos vagos na zona histórica em apreço é quase o dobro da do concelho.

4.O investimento de residentes em Portugal em residência secundária parece seguir dois modelos, diferenciados pela crescente acessibilidade rodoviária:

-o da residência secundária de proximidade sobretudo no litoral (Ericeira, Figueira da Foz e por aí adiante) e também no campo,

-o do investimento em residência secundária na Área Turística do Algarve. 

2.2.Residentes no estrangeiro
*Portugueses Residentes no Estrangeiro
Os emigrantes acumulam recursos que permitem a construção de moradias (as tão vilipendiadas ‘maisons’) ou aquisição de apartamentos, na ‘terra’ ou na urbanização do litoral.

Estes apartamentos e vivendas estão ligados a alguma utilização como residência secundária durante as férias, com possibilidade de possibilidade de passar a residência habitual durante a reforma.

*Estrangeiros residentes no estrangeiro
O Algarve é o caso mais evidente e importante de estrangeiros não residentes a investir em residências secundárias em Portugal, muitas vezes com a perspectiva de aí viver a reforma ou imigrar em permanência.

A exuberância da afirmação de interesses particulares durante os anos de antes da Crise sobrevaloriza a residência secundária em resorts e despreza o importante investimento em habitação dispersa e os green shots de investimento em meio urbano. Tema a aprofundar.

3.Procura/oferta de residências secundárias de utilização turística
*Dupla flexibilidade na utilização de alojamentos familiares
Nos dois pontos anteriores não há referência explicita a turismo, mas a ocupação humana de uma residência secundária implica uma de duas utilizações turísticas ou a sua combinação:

-residência secundária por conta própria, pelo proprietário, familiares e amigos,

-residência secundária arrendada a turistas, aquilo a que na actualidade se de designa por Alojamento Local – não há vagos porque o arrendamento a turistas … implica o vago passar a ser residência secundária (5).

A figura 1 ilustra

-as três ocupações do Alojamento Familiar do Recenseamento da Habitação [a vermelho], que ao longo do tempo podem variar entre residência permanente, residência secundária e vago,

-as duas utilizações da Residência Secundária de Utilização Turística [a verde], que ao longo do ciclo anual podem ou não variar entre Residência Secundária Pelo Próprio e Residência Secundária Arrendada a Turistas.



Fonte: Elaboração própria

A dupla flexibilidade da ocupação do Alojamento Familiar e da utilização da Residência Secundária é suposta facilitar o comportamento do Homem numa sociedade cada vez mais marcada pela flexibilidade e mobilidade, mas

-a da ocupação do Alojamento Familiar (a vermelho) tem relação difícil com a Politica do Ordenamento do Território,

-a da utilização turística da residência secundária (a verde) tem relação difícil com a Politica do Turismo.

Parece e é simples. Desde há dezenas de anos, a (má) legislação e a (péssima) aplicação complicam e conduzem a um nó Górdio que tem de ser desfeito.

* Residências secundárias de utilização turística no Turismo Interno
O gráfico 6 ilustra a procura por residências secundárias de utilização turística no turismo interno e compara com a utilização da hotelaria legal. Constatamos:

-a utilização de residência secundária por conta própria é mais do dobro da arrendada a turistas e tem valor perto do da utilização da hotelaria.

Gráfico 6 –Residências secundárias de utilização turística no turismo interno
(milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Estatísticas do Turismo

Não dispomos de informação que nos permita quantificar estas utilizações no caso do turismo receptor.


A Bem da Nação

Lisboa 29 de Novembro de 2016

Sérgio Palma Brito

Notas

(1)No próximo post detalhamos a origem da designação Alojamento Local e a sua definição legal.

(2)Entrevista de Sidónio Pardal ao Expresso de 26 de Novembro de 2016.

(3)A estimativa é nossa com base em análise por freguesia e peca por defeito.

(4)Os jovens e os mais distraídos poem não ter a noção da degradação do parque habitacional do País.

(5)Utilizamos a terminologia do INE.


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